segunda-feira, 27 de maio de 2013

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(imagem retirada da internet)



O mito da felicidade


A família é um lugar de imperfeições várias. O casal acredita que vai ser feliz para sempre e que os filhos serão o culminar desse encontro “perfeito”, mas essa realidade não é estática. Circunstâncias várias mexem regularmente com a estrutura da família podendo causar mudanças, sofrimento e dificuldades.

Alguém disse que a família é o lugar onde tudo, verdadeiramente, se joga. Portas adentro das nossas casas e das nossas famílias, desde os primeiros dias no berço, onde começa a longa travessia da vida em todas as suas etapas, viveremos os momentos mais marcantes das nossas vidas: todas as sensações, todas as emoções, todas as memórias, especialmente as que não conseguimos verbalizar de tão longínquas que são, todas as perturbações e conflitos, desejos satisfeitos e por satisfazer, todas as alegrias, satisfações e estímulos, o prazer dos triunfos, o molhado das lágrimas, os apertos do coração, os ruídos tranquilizantes que nos embalam, seguros, no sono sonhado e os outros que nos assustam e dilaceram. Esse passado faz-se presente e real dentro de nós a qualquer momento. 
Tudo o que nos faz sentir plenos por dentro, no nosso incomensurável e complexo mundo interno ou, pelo contrário, tudo o que semeia as nossas inseguranças, medos e incertezas são aí forjados, nesse intenso e estranho lugar que é a família, a nossa querida família, força ou debilidade conforme as circunstâncias vividas, as ditas vicissitudes que nos moldam para lá do nosso controle. Famílias perfeitas? Um mito. E de outra forma não poderia ser, uma vez que somos inevitavelmente imperfeitos e é por aí, justamente, que o desafio se coloca. 
Evoluir pelas experiências e aprendizagens aos longo dos séculos — em que a família se vai transformando mas permanece sempre, embora das mais variadas formas — com a finalidade de nos tornarmos pessoas melhores é um desafio permanente que vale a pena ser vivido, não só porque representa uma promessa de vida melhor para todos nós, como nos obriga a ultrapassarmo-nos e leva-nos a cuidar mais atentamente das nossas crianças, as crias que mais tempo levam a “nascer”, ou seja, que mais tempo precisam de cuidados maternos, ao contrário das outras espécies que pouco depois de nascer rapidamente se tornam autónomas.


Seres relacionais 

Entre os muitos e variados fatores que têm implicações na organização familiar, a qualidade dos cuidados a prestar aos nossos filhos é crucial pela mais simples das razões: desses cuidados maternais depende o bem-estar da criança, um estado de graça que é condição essencial para um desenvolvimento harmonioso, tanto mais importante quanto é verdade essa harmonia estar intimamente relacionada com a capacidade relacional da criança que um dia será adulto e criará a sua própria família. “Amarás como foste amado” poderia ser uma máxima apropriada para lançar a primeira pedra na construção de qualquer família. 
A mãe é o “cuidador fundamental” do bebé, embora o papel do pai tenha a maior importância, declara Paulo Sargento, psicólogo clínico e professor da Universidade Lusófona, que esteve presente no colóquio “Felicidade familiar” promovido recentemente pela Clínica da Educação. Aliás, a “abnegação parental” é imprescindível, e dela depende, obviamente, a satisfação e bem-estar do bebé, cuja dependência prolongada exige “cuidados diversificados”: pede tempo, paciência, dedicação, disponibilidade, empatia e a capacidade materna de se “fundir” com o recém-nascido, de adivinhar os seus desejos e necessidades.
À medida que esse bebé cresce, as suas necessidades vão-se modificando. Nos primeiros meses de vida os cuidados, a consistência do atendimento e a regularidade da presença materna “são fatores de proteção” imprescindíveis, diz o psicólogo. Nesta fase, ao pai cabe uma outra função nem sempre fácil de cumprir e que se traduz “na prontidão e disponibilidade total para atender as necessidades da mãe e do bebe sem contudo interferir”. A mãe sente que o pai da criança está ali, disponível para o que for preciso mas evitando interferir no processo que se desenrola entre ela e o filho, díade perfeita neste tempo precoce, em que o pai ainda não separou o bebé da mãe mas está lá, disponível, sobretudo bem representado na mente da mãe.  Mais fatores de proteção revelam-se imprescindíveis para um bom desenvolvimento infantil, nestes períodos mais precoces: são eles a proteção e a autonomia do bebé. Devem ser geridos de forma empática e atenta: a proteção do bebé, que a princípio é total, deve ir diminuindo subtilmente, em sentido inverso da autonomia que nos primeiro tempos é nula mas vai-se construindo aos poucos. Com o passar do tempo chegamos à também delicada gestão dos limites. 
Radicalmente contra “a palmada pedagógica” em qualquer circunstância, Paulo Sargento declara que a colocação de limites ao comportamento da criança tem mais a ver com capacidade de saber criar barreiras “ao comportamento e aos processo de reconhecimento emocional do direito do outro”, definindo este processo como algo “criativo mais do que estandardizado porque a rigidez não educa ninguém”, garante Paulo Sargento. Sem maleabilidade, diz, “não educamos ninguém”, e justamente, na perspetiva da limitação educativa, o mais importante é levar a criança “a trazer de dentro para fora o que ela tem de melhor, o seu melhor potencial”.  Finalmente, o ingrediente fundamental, “real”, imprescindível, “é o mimo”, conceito que pode criar confusões, uma vez que por vezes é usado em termos negativos, do género: “aquela criança é muito mimada!”. Nada mais errado. O mimo, assegura Paulo Sargento, “nunca é demais”. Na sua longa prática de psicólogo clínico “nunca ninguém se queixou de ter tido mimo a mais”, muito pelo contrário. A muitos dos seus pacientes faltou, precisamente, mimo em quantidade, mimo sem restrições. 
Parentalidade é responsabilidade. Deixadas todas estas dicas por Paulo Sargento, autor do livro “Só amor não basta?”, que são sementes preciosas para a construção de uma família suficientemente feliz, como diria o psicanalista inglês Winnicott ao mencionar como ideal a “mãe suficientemente boa” — já que não há nada pior do que mães perfeitas, que nunca erram e agem sempre sem falhas — resta-nos concluir que numa “família feliz”, diz Paulo Sargento, “a parentalidade positiva, aquela que contribui mais para a felicidade do grupo de pessoas que têm maior proximidade, que convivem diariamente, que têm uma relação claramente mais afetiva que negativa é, antes de mais, responsabilidade e abnegação”. Na verdade, sublinha, “temos que estar dispostos a negociar muita coisa e a renunciar também a muita coisa”. Perdemos bastante “em prol do cuidado” dos filhos. Mas vale a pena, o balanço é francamente positivo, dá um verdadeiro sentido à vida e acarreta, sobretudo, esperança no futuro. 
“Todas as crianças do mundo são nossos filhos”, diz-nos Teresa Andrade, psicóloga e também presente no colóquio sobre “Felicidade Familiar”, da Clínica da Educação. Terapeuta com larga experiência de acompanhamento a famílias, crianças e jovens, professora na Escola Superior de Saúde de Egas Moniz e na Faculdade de Medicina de Lisboa, Teresa acredita que “nós não somos muito diferentes uns dos outros, em toda a Humanidade; podemos ter do ponto de vista genético maior proximidade com os nossos filhos, mas do ponto de vista humano todas são, de certo modo, nossos filhos também”. Por isso é dever de todos nós “investir nas crianças, no seu potencial do ponto de vista cognitivo, desde pequenos, o que faz toda a diferença”.
Mais uma vez, e como não poderia deixar de ser, a aposta principal vai para as crianças porque elas são esponjas, absorvem toda a dinâmica familiar em que estão imersas. Proteção, negligência, estímulos ou falta deles, apoio, tempo, escuta, relações familiares harmoniosas ou violentas, de uma maneira ou de outra as crianças são impregnadas das emoções que acompanham estas condicionantes e constroem-se em torno delas. Em certas circunstâncias, Teresa Andrade acredita que muitos dos recursos de algumas não são aproveitados, não chegam a emergir, o que é uma perda enorme para todos nós, sociedades de hoje e de amanhã. É justamente no estimular desse potencial, na descoberta dos diamantes “que nascem debaixo de qualquer pedra” que é preciso apostar. A sociedade organizada, assumindo o papel de grande família, deve ajudar essas crianças a, tal como referiu Paulo Sargento, “trazer para fora o que a criança de melhor tem dentro”. Na verdade, diz Teresa Andrade, “a questão é o esforço que esses talentos fazem para vir à superfície”. Estes diamantes aparecem no meio do nada, e “surge esta vontade de mudar, de melhorar, de crescer, de procurar mais informação”. E estas crianças devem ser apoiadas.


Sofrimento em família

O sofrimento dentro das famílias existe e afeta as crianças e os adultos das mais diversas maneiras, mas não há como erradicá-lo. “Sabemos que em crianças maltratadas, que passam por várias circunstâncias difíceis, o cérebro regride, segregando muito cortisol”, diz Teresa Andrade. Assim, há zonas cerebrais que “face a demasiado stresse podem ficar danificadas por falta de irrigação”. Não quer isto dizer, acentua Teresa Andrade, “que enquanto seres humanos não tenhamos formas de superar o sofrimento, e não quer dizer que a dor não ajude a construir mais fortemente um ser humano, mas eu acredito que apesar de tudo destrói mais do que constrói”.
A resiliência não é regra, na verdade. Apenas uma minoria de crianças tem essa estrutura psicológica específica, ou seja, “conseguem reagir a esses estímulos de uma forma positiva o que as leva a reconstruírem-se”. Sabemos que as vivências muito negativas repetidas “criam baixa autoestima, depressões, revolta”, e assim a maioria destas crianças que crescem em famílias onde há muito sofrimento “ficam com marcas, com dificuldades na relação com os outros, não vão ser mais fortes socialmente, não vão estar motivadas, não vão estudar, vão desistir muito cedo, não vão acreditar em si próprias, não vão construir uma sociedade melhor, vai-lhes desaparecer o brilho dos olhos muito cedo”. Dizer que aquelas crianças que sofrem vão, “de alguma forma, dar a volta” é negligência.
A família perfeita, diz Teresa Andrade, “é uma família que está apoiada por qualquer coisa que é maior que ela própria”, e é justamente, de construir uma sociedade melhor de que se trata aqui. Teresa Andrade aposta fortemente em ações concertadas, integradas em projetos específicos que se destinam a estimular, do ponto de vista cognitivo, crianças que vivem em bairros pobres e degradados em vários pontos do planeta. Na verdade, tem sido provado que pode-se prevenir, melhorar, fortificar, estruturar as crianças para que possam crescer mais aptas para enfrentar desafios e construírem porventura um mundo melhor. 
“É um longo processo”, diz Teresa Andrade que à sua maneira também fala de esperança, introduzindo um elemento novo que é o conceito de “família alargada”, ou seja, acredita que é preciso trabalhar para que a sociedade se implique num investimento profundo nas crianças para que depois se recolham os frutos. Mas não só. Há grupos de pessoas que vivem na maior solidão, pessoas cujas famílias biológicas desmoronaram e aí, a sociedade deve intervir como “família maior”.
A questão é começar já a pensar “em mecanismos de apoio social, abrangente, que olhe de facto para as pessoas, para a sua solidão”. Há que apoiar pais e mães divorciados cuja rede familiar deixou de existir e sugerir apoios alternativos. Será este o caminho mais indicado, fruto das nossas aprendizagens ao longo do tempos. “É a responsabilidade de quem vai ganhando consciência”.


Divórcio Colaborativo

O divórcio faz parte da evolução dos tempos, tem a ver com “o questionamento das estruturas que nos foram impostas”, diz Teresa Andrade. Dantes, quando o divórcio era raro, poderia haver alguma estrutura na família mas não eram certamente ambientes felizes para criar os filhos. “Havia muita violência física e psicológica ao longo dos anos, com grandes custos para as crianças, nomeadamente em desgaste físico e psicológico”. Existe atualmente uma forma de mediação do divórcio em Inglaterra e nos Estados Unidos, que é o divórcio colaborativo, ou seja, é mediado por psicólogos e advogados. A ideia é promover a comunicação entre o casal, para que se tornarem colaborantes, capazes de comunicarem um com o outro sem mágoa, o que permite alcançar excelentes resultados. Em Portugal, há casais que já recorrem à mediação, antes ou depois do divórcio. O intuito é salvaguardar o bem-estar dos filhos.


O “Preço" de uma criança

No que diz respeito ao bem-estar de uma criança, hoje temos uma cultura ainda muito impregnada do espírito neoliberal, que tudo reduz a um valor”, diz Paulo Sargento. É comum ouvirmos pais e mães queixarem-se de que “hoje os filhos custam-nos muito mais caro do que já nos custaram”. Contudo, se andarmos para trás no tempo, nas sociedades da revolução industrial ou nas que viviam exclusivamente da agricultura, ter muitos filhos representava uma mais-valia, mais braços para trabalhar. Hoje, nas sociedades pós-modernas e por via das grandes mudanças socioeconómicas, “vivendo numa cultura de direitos, corremos o risco antagónico”. Paulo Sargento “diria que as crianças precisam de muito pouco”. Não será preciso assim tanto dinheiro para os educar. Os ingredientes principais não custam dinheiro. Bem vistas as coisas e citando Eduardo de Sá, Paulo Sargento recorda-nos que “nunca a humanidade teve tantos e tão bons pais”. O segredo está na atualização atenta e na adaptação constante desses recursos parentais às necessidades profundas dos filhos.



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